Translater

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Aprendizagem [619]

 


Quando desvio

o olhar demorado de uma imagem,

recebo a violência do sol na retina.

Magoa-me e queima-me

ver o deslustre e o embuste externo de mim.

 

Escorrego e caio

nos imaginados afetos e apoios

quando os passos dos outros,

dessincronizados dos meus,

me induzem num abismo desprotegido e vão.

 

Ainda vivo,

quase morro na sombra desagradável

de artes emaranhadas

que a próxima aragem dissolverá

e a noite talvez ilumine os seus vestígios.

 

Os contrastes ferem-me,

mas alimentam-me no doloroso calvário

do meu crucificado aprender.

 

 

© Jaime Portela, Junho de 2025


segunda-feira, 2 de junho de 2025

Chalaça doméstica [618]

 


Escravos do brilho e da cor,

dançamos na verdade e na mentira.

Se não dançamos,

não sabemos do gelo intenso

que há no cimo das montanhas

ou do calor sufocante

no meio dia do deserto.

Mas dançamos e,

sob as vestes,

temos um corpo mortal que resiste

a tudo a que, sozinhos,

pensamos fazer frente,

mas que não é senão

a chalaça doméstica

da verdade em que nos cremos.



© Jaime Portela, Junho de 2025


segunda-feira, 26 de maio de 2025

Decadência [617]

 


Para os populistas, os outros

(minorias, imigrantes, partidos)

são os construtores da desgraça.

E a mentira penetra na memória coletiva

como água que caia na areia.

 

Os fabricantes de notícias sensacionalistas,

em nome de audiências,

distorcem factos ou insinuam

e usam os populistas.

Informar é secundário.

 

A decadência alastra-se,

dizem e mostram o que queremos ouvir

como quem dá guloseimas às crianças.

 

Aflitas,

as exceções vão perfilhando a mesma estratégia.

 

Na febre da ficção, todos se convencem

que para se atingir o êxito

basta haver um ponto fixo, a mentira,

e partir dali a toda a brida para o poder.

 

Se o povo fosse sábio… outro galo cantaria.



© Jaime Portela, Maio de 2025


segunda-feira, 19 de maio de 2025

Vítimas submissas [616]

 


Quem pretenda fazer

um inventário de aberrações,

bastará fixar em vocábulos

a irrealidade que o sono inventa

em noites de insónia.

Essas ficções

têm o absurdo dos sonhos

sem a desculpa do sono profundo.

Adejam como aves agoirentas

à volta da inércia do espirito

ou como mosquitos

que adormecem o nervo da recusa.


 

© Jaime Portela, Maio de 2025


segunda-feira, 12 de maio de 2025

Encarcerados [615]

 


Agarramo-nos à vida e não queremos a morte

e procuramos algo que cintila

no íntimo do desejo

como um tesouro de paz a flutuar

num céu onde não sabemos chegar.

 

É o fardo e o dissabor

do mundo que vemos e não vemos,

num firmamento embandeirado

de armas visíveis a olho nu

e na multidão de notícias

que vão enfraquecendo pela repetição,

de onde o minguante da pacificação

assoma como a candura estática da lua,

distante e apática.

 

E é assim que sentimos

a ausência de um Deus que nos valha

e nos liberte desta subsistência de guerra,

um Todo-Poderoso,

porventura distraído,

na imensidão de um céu incomunicável,

enquanto continuamos encarcerados numa prisão,

sem dela, nem Dele, podermos fugir.

 

 

© Jaime Portela, Maio de 2025


segunda-feira, 5 de maio de 2025

Se não sonhasse [614]

 


Se não sonhasse,

o existir num imperecível desprendimento

poderia apelidar-me de idealista,

ou seja,

alguém cujo mundo extrínseco

é uma nação apartada.

Não sou catalogável,

já que apenas tenho em mim

o saber do prognóstico só no fim do jogo,

porque transporto no sangue

os glóbulos que desconhecem a previsão.

Mas continuo a sonhar,

é qualquer coisa como a obrigação

de fazer do sonho uma constante,

porque gosto de assistir a um bom desempenho

sendo eu a testemunha do que faço e penso.

Na verdade, é dos sonhos que me edifico

em casas e causas imaginadas,

vistas incertas, quadros datados ou futuristas,

num sonho contínuo

produzido entre matizes de arco-íris

e à sombra de aplausos impercetíveis.

 

 

© Jaime Portela, Maio de 2025


segunda-feira, 28 de abril de 2025

Outros virão [613]

 


Com o tempo, passamos a duvidar

se o que se consuma a cada dia nos diz respeito

ou se, o que somos, é uma desmemória à meia-luz

onde não existem mais que uns vagos zumbidos

sem o grasnar das gaivotas.

 

Quase nada sabemos,

o que resta da infância são histórias

mais distorcidas que os sargaços,

abraçamo-nos ao carinho do sol que escasseia

ou à aragem imprecisa,

mas culpada sem provas dos resfriados.

 

As lamparinas votivas tremem de fé

na igreja onde já não rezamos

e paralisam as águas

nos lagos de lembranças desabitados.

 

Não são visíveis os corações esculpidos

nas árvores da vida e as vontades são papéis

que voam empurrados por um vento incerto

à sorte de mãos alheias que raramente os acolhem.

 

Outros virão

para olharem o mundo da mesma janela,

chorosos do sol que há lá fora e, com sorte,

acabarão sem contrições no meio de círios

ou manchados

de infrações que sempre negaram em vida.

 

 

© Jaime Portela, Abril de 2025


segunda-feira, 21 de abril de 2025

Chico-espertice [612]

 


Não devo perder-me
em nevoeiros de abstrações,
pois sei: qualquer teoria
pode ser bela — e o oposto, também.

Ambas cabem
num bem tecido raciocínio,
mas isso, por si só,
nada revela ao mundo.

A mente, por engenhosa que seja,
não tem o direito de esquecer
que demonstrar é despir a realidade,
não vesti-la de argumentos.

Por isso, calo-me
sobre a tal "falta de ética".
Doravante,
para que todos vejam sem véus

e percebam a verdade,
chamar-lhe-ei chico-espertice.

 

 

© Jaime Portela, Abril de 2025


quinta-feira, 17 de abril de 2025

A Via Sacra da Vida [611]

 


A vida é uma nuvem que passa,
desfiando-se ao som do vento
até se perder no horizonte.

 

Da vida,
ficam apenas fragmentos soltos,
torrões esfarelados pela incerteza,
desbotados à distância
pela dúvida míope do que é real.

 

Para quase todos,
a vida resume-se ao saber suado

e rebuscado

ao serviço de feudos ocultos,
como príncipes
que aspiram a um trono que não há.

 

Somos nuvem de um instante,
somos ida sem retorno,
somos memórias que se apagam
pelos caminhos dispersos
da Via Sacra da vida.

 

 

© Jaime Portela, Abril de 2025